segunda-feira, 16 de abril de 2007

DESCONSTRUINDO A REALIDADE

“Não é a colher que se enverga, quem enverga é você...” Essa frase do filme Matrix sugere que a realidade pode apresentar diversas formas, apenas dependendo da perspectiva de quem a observa. Para M. C. Escher, a exemplo de sua obra “Alto e Baixo” (1947), a realidade tal qual costumamos observá-la, desdobra-se, sugerindo a não linearidade das formas e, porque não, do tempo, do espaço e da realidade. Pode-se inserir neste contexto “A cidadezinha” de Philip K. Dick, aonde a realidade, ou ficção que se apresenta como real (“A mente constrói a realidade. Ela a emoldura e a cria...”) não é desdobrada, mas substituída. É a ficção científica desconstruindo os conceitos preestabelecidos da realidade.

A princípio, tomando como base o “Cânon” de Roberto Reis, pode-se dizer que existe uma realidade que é aceita pela maioria e que passa a ser “canonizada como verdade absoluta” por uma determinada sociedade ou grupo de pessoas, porém Reis introduz seu artigo citando a crônica de Machado de Assis onde este sugere que todos os relógios do mundo não marcam a mesma hora, então, como saber qual relógio está correto? Ora, se utilizarmos tal citação como metáfora da nossa realidade descobrimos que o que temos como verdade pode ser apenas uma perspectiva aceita pela maioria. Nossos princípios, noções de certo e errado, visão do mundo, partido político, etc., seriam ficções a nós apresentadas como verdade absoluta. Estaríamos numa Matrix? Neste caso, o mundo real seria o outro lado, por exemplo, como o apresentado no filme? Ou seria apenas uma outra ficção criada por aqueles que almejam a “liberdade”? Roberto Reis diz que: “... Temos acesso ao mundo ‘real’ a não ser a partir das representações construídas sobre o mundo, as quais, por sua vez, são versões sobre os eventos...”

A principal diferença entre o real ou canonizado e o ficcional é a maneira como estes se apresentam. Ao pegarmos um jornal e lermos uma notícia, esta se revela como verdade embora seja apenas uma impressão jornalística do fato ocorrido, ou seja, uma ficção, enquanto ao lermos um livro ou assistirmos um filme, temos a consciência de se tratar de uma obra de ficção. Um bom exemplo é a obra “Nove Noites” de Bernardo Carvalho, aonde logo na primeira página o autor adverte o leitor: “É preciso estar preparado [...]. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais o sentido que a trouxeram até aqui.” Embora seja uma obra baseada em pesquisas, se assume como ficção enquanto impressão do autor sobre os fatos ocorridos. Neste sentido a questão não é classificar o que é real ou ficcional, mas sim discutir a realidade como nos é apresentada.

No conto de Philip K. Dick, Haskel, insatisfeito com a realidade na qual estava inserido, a modifica e substitui. Nesse caso trata-se de uma substituição da realidade. Uma imposição de seus desejos a uma sociedade já existente: “... A cidade fora radicalmente modificada...”, ou seja, um cânon substituído por outro. Tal fato não supre a idéia de que a realidade deve ser discutida e questionada, no sentido de duvidar do real. Para Haskel a única possibilidade é reconstruir a verdade nos seus moldes, e isso faz com que outras pessoas estejam sujeitas à sua criação “A fábrica de tintas. Detestava o cheiro de tinta. Talvez uma panificadora no lugar. Adorava o cheiro de pão fresco. Arrancou a fábrica de tintas.” Não há uma crítica à realidade, apenas a vontade de mudá-la mesmo que continue inserido nessa realidade.

Passamos então a analisar a possibilidade de haver um outro Haskel, reconstruindo a Cidadezinha que ele reconstruiu (posto que ele ainda é um personagem, mesmo na cidade que ele mesmo criou. Como em MIB, aonde sempre existe um universo dentro de outro universo. Em “O mundo de Sofia” essa questão é bem explorada, porém sob uma ótica diversa. Sofia se descobre uma personagem dentro de uma história, e só quando toma essa consciência consegue começar a mudar a sua história, pois a partir do questionamento ela pode optar:

“- Você percebeu que os papéis se inverteram completamente? – Perguntou Alberto depois de algum tempo.

- Como assim?

- Antes eram eles que nos ouviam, enquanto nós não podíamos vê-los. Agora somos nós que os ouvimos, e eles não podem nos ver.

- E isto não é tudo.

- O que você quer dizer?

- No começo nós não sabíamos que existia outra realidade, na qual vivem Hilde e o major. E agora são eles que desconhecem a nossa realidade."

Nesse fragmento da obra “O Mundo de Sofia” de Jostein Gaarden, a princípio parece acontecer algo semelhante ao que ocorre em “A Cidadezinha”, pois também há uma substituição. Sofia, uma personagem, agora torna-se consciente dos seus autores e inverte a situação, agora é ela quem pode vê-los. No entanto há uma diferença fundamental nas duas histórias: Na obra de Gaarden, Sofia e Alberto tomam conhecimento de sua condição, mas não podem interferir significativamente na realidade, ou melhor, embora saibam que são personagens só podem decidir o que querem fazer quando a história acaba, o que pode nos remeter à dúvida crucial dos contos de fadas: O que acontece depois do “E foram felizes para sempre”? Será que Cinderela, Branca de Neve ou Rapunzel continuam com o príncipe? Por outro lado no texto de Dick existe um dado curioso; Haskel muda a sua cidade, recria a sua realidade mas o faz de fora “depois quando tivesse terminado, não poderia mudar mais nada” e então se insere novamente na história. Ou seja, na verdade ele apenas se torna a personagem principal, porém continua inserido na história, não tem o poder de mudar mais nada, depois, do que está feito. Ele não questiona sua condição de personagem, apenas tem a chance de mudar sua posição na história que pode estar sendo escrita por outra pessoa, e nesse ponto assemelha-se a “O mundo de Sofia” onde a realidade de Hilde e o major pode estar sendo contada por uma outra pessoa. Nesse sentido Sofia parece estar em vantagem por conhecer sua condição, o que lhe dá a oportunidade de escolher em que acreditar ou como acreditar.

O mesmo questionamento sobre a construção da realidade pode ser percebido nas obras de M. C. Escher, ele como que materializa tal questionamento em formas que distorcem o cânon da geometria. Escher cria a possibilidade de uma nova perspectiva de ver a realidade, sugerindo que nem sempre as coisas são o que parecem ser, ou, sempre as coisas não são o que parecem ser, ou, ainda, que existe uma maneira de olhar diferente da convencional.

Em suma, é o conhecimento daquilo que se apresenta como real e a desconfiança perante o mesmo que nos impulsiona a buscar novos caminhos. A ficção científica vem possibilitar essa busca, desconstruindo a realidade caninizada, seja na não linearidade das formas de M. C. Escher ou nas possibilidades que apresentam obras como “A trilogia Matrix”, A Cidadezinha”, “O Mundo de Sofia”, etc. No entanto, como citado no filme “Homem Aranha”: “um grande poder traz uma grande responsabilidade”. A responsabilidade de ser “Sofia”, desconstruindo o real em busca do conhecimento, como “Alice no país das maravilhas” ou a comodidade de ser “Haskel”, substituindo o real em busca da sua satisfação pessoal. Opção entre a crítica ou a loucura.

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